Category Archives: Textos

Ética

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(sob o tema: “E se o céu me caísse em cima…”)

Em plena praça, já a caminho. Ao fundo, só mais uma rua a atravessar, e é entrar na porta em frente, para a entrevista. Felizmente, estava tudo tratado, e o emprego seria seu. Com antecedência, tinha já um esboço de como proceder, e previa que, começando a ganhar a confiança das pessoas chave que o seu amigo lhe iria indicar, as coisas lhe correriam de feição. Os primeiros tempos seriam de trabalho árduo e produtivo; a bem dizer, uma sementeira a boa profundidade, bem regada, que daria os seus frutos. Líquidos. A aposta nas boas graças do Rei e da Rainha era fulcral neste tabuleiro, para que os esquemas que arquitetara fossem indistintos. Ou brancos. Branqueados, seria o correto.

Ajeita a gravata, incómoda naquela tarde abafada de um céu baixo e cinzento, de nuvens carregadas, volumosas, como grandes balas de canhão, redondas, de chumbo reluzente, prontas a cair em dilúvio sobre um qualquer incauto.

Olha para a esplanada da praça e lembra-se de um colega que certa vez o tinha convidado para um café. Um dos mais antigos da empresa de onde agora saíra pela porta pequena. Puxara com cautela o colega o tema da ética, ao que, do alto da sua sentada imponência, recostado no mais conhecido modelo de cadeiras português, lhe ripostou: Ética?! Ah, Érica, a das curvas?! Isso são águas passadas… Rira-se alto, quase rosnando, numa espécie de soluço nasalado. Que pequenez de vistas, o colega. Uma miopia singular, tacanha, estreita. Com tanta gente de bolsos largos, porque não haviam de aumentar também os seus proventos? Poderiam ter conseguido tanto, os dois. Sim, que estas coisas exigem, dão muito trabalho, e também obrigam a alguns sacrifícios. O casamento com a Maria Beatriz seria dali a meses, lá conseguira apessoar-se de um ar de integridade, e o esforço resultara. Entrar numa boa família, de valores conceituados, era imprescindível.

De repente, um remoinho, um vento forte largado à rédea solta, faz voar alguns dos chapéus da esplanada, e voltejam guardanapos e papéis e ementas e jornais e cartazes de gelados. Instintivamente, olha para as varandas do primeiro andar do edifício da empresa, não vá haver algum vaso que lhe possa cair em cima quando chegar à porta, e começa a atravess…

*

Movido pelo estrondo e alarido que se lhe seguiu, Rodrigues vai à varanda e olha para a rua. Cai-lhe o mundo e a esperança. Agarra-se com força ao varandim, como se com esse gesto pudesse fazer retroceder o impensável. Revolve-se-lhe o estômago e todas as entranhas. De um só golpe, um amigo e a previsão financeira de dias mais desafogados.

… Indiferentes ao tilintar dos dias, as folhas douradas do outono bailam na praça.

Hum…al al moço com os heterónimos

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No contexto de um projecto de Intervenção Cultural e Artística na Comunidade,  temos vindo a desenvolver diferentes tipos de exercícios, que se traduzirão, em Julho, num resultado final que consistirá numa performance em espaços menos convencionais. Num dos ensaios, fizemos uns exercícios de criação de heterónimos. Mais tarde, fui almoçar com dois colegas, tendo o resultado sido este:

 “Hum… que que quer águua, São? – Pergunta Pipe. Joana, por ser mais rápida, responde de rompante: – “Obrigada, João, quero sim”, enquanto atende o telemóvel. Ri-se com a voz do outro lado, e ninguém se aperceberia de quão difícil tinha sido o seu dia ontem, pois tristezas não pagam mágoas, já que dívidas felizmente não tinha.

São observa atentamente as suas lulas de caldeirada que, apesar de estarem boas, não vinham acompanhadas de salada. Pede um bocado de alface do prato de Isabelle, que acede de má vontade, o que se notou no modo brusco como lhe passa o prato pela frente. Nem de propósito, neste gesto contrariado os longos cabelos de Isabelle aproveitam para se banhar no molho arruivado da caldeirada que Joana come com o deleite do costume, tudo se confundindo num mesmo tom. Hum… cabelos “ao creme de marisco”… pensa Pipe, lembrando-se de um restaurante a que tinha ido há uns anos. Tinha sido quando saiu do hospital, depois da terceira operação às pernas. Não tinha resultado, continuava com o seu andar desmanchado, mas já estava habituado, e via que agora os seus amigos também já tinham algum carinho por essa sua característica. De qualquer modo, isso não influenciava em nada o seu apetite, e hum…o creme de marisco que tinha comido na altura vinha-lhe de vez em quando à ideia, como agora, embora hoje tivesse que se contentar com umas tiras de choco fritas, que também se comiam bem. Com algum receio, pergunta a Joana se quer provar, mas São, certa do seu apetite demolidor, intervém dizendo que tinham que se despachar para ir ao jardim. Entretanto, telefona à filha a perguntar alguma coisa que tinha que ser mesmo nessa altura, entre apanhar as argolas de lula que boiavam no meio do caldo, e contar um episódio passado com a Joana, quando esta limpava os vidros lá em casa na semana passada.

Hum… decorre o telefonema e Pipe já não percebe se a Sofia é a cadela que é heterónimo de Alfredo, o gato, ou o contrário. Ou se Isa é mesmo a filha da São, ou é heterónimo de um dos filhos de Joana, que afinal existe mesmo. Hum… mas essa tem os miúdos pequenos, ainda não têm telemóvel, matuta Pipe.

Paula pergunta ao João como vão os seus trabalhos de pintura, e ao vê-los Isabelle espanta-se com tanta arte. Maquinalmente, devolve o seu olhar para o prato, já vazio da alface que tinha mudado de paragem, e vai afastando com o garfo os quadrados de batata frita e as amêijoas. As amêijoas… lembram-lhe um concheiro que tinha aparecido numa escavação no sul de Itália. Sente o cheiro de tabaco, mas hum…Pipe não tinha ainda acendido o cachimbo, que João lhe tinha oferecido no Natal. Talvez o fizesse mais tarde no jardim. Do paraíso, ou da Celeste, ou de quem fosse…

Confuso?! Nem tanto. Talvez o mais difícil tivesse sido sentar seis pessoas em três lugares, ajeitando braços e pernas, mas lá couberam. Aliás, não consta que Fernando Pessoa ou Pedro Proença tivessem alguma vez sido expulsos de algum restaurante por almoçarem com os seus heterónimos, nem pago mais caro por isso”.

 

a corda da roupa

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Meias, meias, meias, mais meias, o pé 41 do Ricardo, o meu 39, o 26 da Inês e estas mini do bebé. E pensar que o meu marido e eu nos aborrecemos hoje de manhã por causa de umas meias… E ficámos assim, a meio da conversa, a meio do bom humor, a meio do que vale a pena.

Enquanto as estendo, olho para o vizinho de baixo que rega as plantas no seu quintal. Viúvo. Penso se alguma vez terá discutido por causa de umas meias. Talvez sim. Mas, pensando na sua mulher, no seu sorriso que recordo como doce e sempre atento aos pormenores, não me parece que alguma vez tenha discutido por causa de umas meias.

Deixo cair uma meia azul da Inês que, apanhando uma brisa momentânea, se instalou perto da roseira que o Sr. António regava. Olhou para cima, e sorriu, e parecia quase-quase o sorriso doce e sempre atento que tinha a sua mulher. “Sabe, agora fez-me lembrar uma coisa… uma vez a minha mulher aborreceu-se comigo por causa de umas meias… veja lá, por causa de umas meias, imagine… que saudades tenho dela, até desse episódio das meias. Éramos novos, e ainda dávamos importância às meias. Mas, olhe, na realidade, tudo vale, e o que nós nos rimos depois com isso das meias”.

“Ah, sim … pois… hum… às vezes há assim coisas dessas, mas tudo passa…, eu já aí passo a buscar a meia…”. Embatuquei. Pensei novamente no sorriso doce e atento aos pormenores que eu recordava, e dei-lhe mais valor. Porque era um sorriso maduro, um sorriso que resultava do delapidar de muitas coisas, um sorriso que resultava do limar de arestas, um sorriso que queria mesmo ser sorriso, ser doce, e ser atento aos pormenores. Que era o sorriso que o Sr. António também agora tinha.

Lembrei-me de fazer um jantar que fosse prático, para o Ricardo não gastar depois muito tempo a arrumar a cozinha, e poder ter tempo para ver um episódio completo da sua série favorita. Seria um mimo, um “pequeno pormenor” e, à minha maneira, pedir desculpa pelo episódio das meias.

Toca o telemóvel, e era o Ricardo a dizer que logo saía mais cedo, ia buscar a Inês à escolinha, e depois apanhava-me em casa, e ao bebé, para irmos ao jardim, e comer um gelado. Era um mimo, um “pequeno pormenor” e, à sua maneira, pedir desculpa pelo episódio das meias.

Talvez fosse esta a nossa maneira de irmos arranjando o nosso sorriso doce e atento aos pormenores, talhado nos pequenos incidentes do dia-a-dia.

Logo, quando saísse, iria buscar a preciosa meia azul com o desenho do monstro das bolachas, que a tia tinha oferecido nos anos à Inês. Tinha sido uma epopeia convencer a Inês que o monstro das bolachas só come bolachas e não pés, mesmo quando está com a boca aberta estampada nas meias, mas agora, que essa situação estava resolvida, eram as suas meias favoritas, e nem pensar em perdê-las, senão era uma cena…

Meias… monstros das bolachas… sorrisos… pormenores… Ricardo… eu…

lançamento – “A personagem incompleta”

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Caríssimos,

 

tenho o grande gosto de vos convidar para o lançamento de um livro, com texto meu e ilustrações de João Paulo Laia.

Trata-se de um pequeno conto…

 

O lançamento será em Lisboa, no dia 1 dez (Palácio Baldaya, 15h) e haverá posteriormente duas apresentações:

Évora – dia 13 dez, na Biblioteca Pública, às 18h30, com um apontamento musical do Coral Évora

Beja – dia 15 dez, na Casa da Cultura, às 18h00, com a exposição dos desenhos originais do livro

Gostaria de vos ver num destes três pontos de encontro!

A Personagem Incompleta-Lançamento

o rapaz da glicínia

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Esperava. E desenhava. No seu caderno de improviso.

Desenhava a glicínia e a sua espera.

A glicínia, um tronco alto que subia até ao primeiro andar, grosso como uma fortaleza tosca, as flores em cachos vibrantes, ramos que se entrelaçavam livremente nas guias, dando alguma sombra ao pátio.

A sua espera, uma coisa que não sabia bem explicar, um sentimento novo que não fazia parte dos seus alfarrábios, e não entrava nos seus cânones habituais. Desenhava a sua espera, ocupando o tempo, ansiando por uma coisa que não sabia, por uma pessoa que verdadeiramente não conhecia.

Olhava atentamente o pátio, absorvendo a sua estrutura, materiais, mas sobretudo a sua vivência, a calma que transmitia às pessoas que se iam sentando nas mesas para os seus encontros e conversas, as cores claras das paredes e o contraste das roupas coloridas de um dia de Maio a chamar o bom tempo. Os encontros e conversas. Que lhe diria, à pessoa de quem estava à espera, a quem não sabia o que dizer, porque não a conhecia? Pousou a caneta. Olhou para o portão do pátio, como se este estivesse aberto de par em par propositadamente para a sua chegada, mas nada. Havia de chegar. Era assim que também achava que estava, de braços abertos para a receber e abraçar. Continuou a desenhar.

De repente, de mansinho, entra pelo lado direito do portão a pessoa desconhecida de quem estava à espera, que o busca com os olhos atentos, à procura duma pessoa que também não conhece. Descobre-o numa mesa perto da parede, desenhando, e nem sabe se o há-de despertar do seu sonho desenhado. Fica a olhar, como se o soubesse sempre assim.

O rapaz da glicínia levanta os olhos, encara a pessoa que se aproxima, de quem estava ansiosamente à espera, e nem se levanta. Nem abre os braços de par em par. Não consegue, ou se calhar não quer. Pára. Apenas olha para a túnica que ela trás vestida. Larga, fresca, cor de glicínia.

o frango

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O apresentador apresentava.

Dum lado, uma equipa de mãe e filha, trajadas a rigor, que um avental a preceito sempre ajuda à organização da bancada.

E do outro, um pai e um filho, trajados a preceito, que o rigor desfraldado de uma camisa de flanela aos quadrados sempre ajuda a estar mais à vontade.

Os concorrentes concorriam.

Uma receita de frango, com reminiscências de uma antiga receita da avó, que ficou famosa num almoço de noivado. Bem, ficou também na lembrança a toalha de renda manchada pelo vinho tinto, entornado de tanta emoção.

E outra receita de frango, com sabores da Ásia, que o tio Manuel esteve por lá alguns anos, e incutiu em toda a família o gosto do gengibre e dos cominhos e do côco. Terão tido também alguma influência aqueles olhos rasgados que recordava com saudade.

Os pacientes impacientavam-se.

Sentados nas suas cadeiras, padeciam os utentes, e a televisão da sala de espera não se calava com o frango. E que falta de tacto, o frango a passar à hora de almoço. E nunca mais chega a vez, e o concurso do frango não se cala… E vão chamando para TAC, ressonâncias, ecografias…

O estômago, prestes a entrar em revolta, ou em convulsão, ou mesmo em greve, lateja agoniado.

Finalmente, chega a tão esperada pergunta de acesso ao exame, de libertação da prisão da sala do frango: Minha senhora, há quantas horas está em jejum?!

vera

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Ontem vi-te a espreitar…
Por estes dias, costumas andar por aqui, a rondar, a rondar, a ver se chegas no momento oportuno, e onde te hás-de instalar. Vens de longe, carregada dos anseios que te vão dirigindo à distância, mas leve, feliz pelo que vais trazer.
E ontem, vi-te a espreitar atrás de uma árvore, e depois corrias para trás de outra, e de outra, e brincavas contigo própria, saltitando. Era tal o afã de chegares, que nem parecias cansada, como se o teres atravessado um longo território gelado não te tivesse esmorecido o ânimo.

Lá estavas atrás da árvore, via a tua saia de chita, rodada, rodeando o tronco, a querer chegar mais depressa que tu. E entre saltita e esconde, prende-se a saia num ramo, e desse pano de chita se desprendem as flores. Vão-se dispersando pelo verde, e em pouco tempo se atapeta a terra. Olhas e ris-te, do gozo das cores e da vida. Saltas entre as pedras, a terra e os canteiros, e ao esvoaçar o teu cabelo, crias uma suave brisa fresca que transporta o cheiro das alfazemas. Vais até ao regato, e com as mãos de água salpicas o ar, e esses aguaceiros refrescam os novos dias. Reflete-se o teu rosto na água límpida e dessa luz se criam arco-íris de esperança. E vais ficando…

E vão passando os dias… e vais ficando… e vão passando os dias… e vais prevendo que, como habitualmente, se aproxima… quase o imaginas já ao longe… aquele galope vigoroso. À mão esquerda, um galope certo, musculado, que faz estremecer quando ressoa em voz forte mas terna… Vera…Vera… Não que assuste, mas como que se impõe… O bater dos seus cascos vai pisando as flores, que vão regressando à terra, o sacudir vigoroso das suas crinas cria um vento forte e súbito, um bafo quente, de sul. Atravessa abruptamente o regato, e criam-se nuvens cheias e uma tempestade repentina. Resfolega de contentamento aquele cavalo grande, possante, imenso, da cor de um sol poente…

Sabes que tens o teu tempo, que é de partir para outros campos. Rodopias na tua saia de chita, levantas a tua mão brilhante como um cristal, acenas e vais dizendo… adeus, bem-vindo, Verão…

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um Natal inclusivo

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Vejo-o levantar o braço direito, e a mão aberta cede a vez, convidando o coro a cantar. Pequeno e habitual gesto, dir-se-ia, e, contudo, esse habitual e pequeno gesto levantou um aplauso gigantesco pela sala. A seguir ao seu solo, no melhor das suas capacidades, entrou o coro, no melhor das suas capacidades. Tenho ideia que seria a “Noite Feliz”, mas independentemente da peça que fosse, não havia dúvidas quanto à felicidade daquela noite.

A primeira canção tinha sido “The little drummer boy” cantada pelo coro e acompanhada ao tambor por três elementos de uma das associações. Um ritmo certo, caloroso, em que em cada batida se podia adivinhar o grau de empenho de quem ensaiou e de quem quis colaborar, feliz por ter tido essa oportunidade.

Aguardava sentado, controlando a ansiedade própria das estreias e dos espectáculos, o resto do grupo, que, quando chegou a sua vez, se dirigiu para as suas posições de actuação. Em meia-lua, talvez 10 elementos, no meio deles o maestro, e à sua frente a técnica de apoio, que servia de guia para os gestos que acompanhavam a peça. Uns gestos mais assim, outros nem tanto, umas frases mais perceptíveis, outras menos, mas o coração canta mais alto, e ouve melhor, e nele cabem todos os gestos de amor.

Atrás de toda esta cena, como pano de fundo, e ao fundo da Igreja, olhava-nos Jesus do sacrário, feliz! Podíamos vê-Lo nas caras comovidas e felizes dos elementos do coro “normal”, nos sorrisos abertos e felizes dos elementos do “coro especial”, no espanto e contentamento feliz da assistência deste concerto inclusivo. E, quase sem saber porquê, automaticamente sorríamos, porque a felicidade contagia.

No final do concerto tive oportunidade de ir dar os parabéns ao maestro, pelo trabalho duro que tinha sido ensaiar o seu coro habitual e os elementos das associações (de paralisia cerebral e de reabilitação) que tinham colaborado nesta iniciativa. Dirijo-me àquele homem, começamos a falar, mas não foi fácil encontrar os seus olhos; à frente, estava uma cortina de água cristalina, transparente, fresca, e lá atrás, num fundo do seu ser, estariam os seus olhos, à procura de alguma coisa que agora começava a encontrar. Aquilo que, eventualmente, tinha surgido como um desafio, com a falta de medição correcta que a distância inicial confere aos acontecimentos, tinha passado por horas e horas de tentativas e persistência, de alegria e falta dela, mas tinha finalmente resultado neste nascimento. O que tinha aprendido tinha largamente compensado toda a experiência, e isso era, por si só, já Natal.

espanta-espíritos

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Um leve som metálico chega de longe, trazido pela brisa morna e densa de um final de tarde de setembro. Sinos?! Pára a brisa, e o mundo vagueia num torpor quente e pesado. Param os sinos?! Apura-se o ouvir, e assim chega de longe um tinir metálico a vários tons. Retoma a brisa, e com mais clareza vão chegando os sons, nessa espécie de massa de ar rasteira à escala do campo louro. E talvez os espíritos se vão afugentando com o tropel de badalos que vem ecoando cada vez mais perto, mais perto, até se verem bem os chocalhos do rebanho… uma massa de tom creme-sujo, ou cinzento cor-de-rocha, uma nuvem fofa de quase-lã que se aproxima. E com essa brisa, e com o tinir dos espanta-espíritos da planície, vêm também as palavras cheias de Juan Alfonso García, nos seus “Amarillos”:

Toda la tarde se encendía,

dorada y bella

porque Dios lo quiso.

Toda mi alma era un murmullo

de ocasos, impaciente,

de amarillo.